Passaram-se
três dias depois do prazo padrão que levava para chegarem as cartas-resposta
dos combatentes, todavia, Alana continuava sem a sua. Não sabia mais o que
pensar. Seu coração doía pela preocupação, mas seu cérebro tentava lhe dizer
que Ranzo poderia estar morto há muito tempo e que as respostas recentes eram
apenas um engodo motivacional de Zhalmyr para que continuasse trabalhando. Uma
trapaça, uma peça de teatro de um diretor desalmado, que beirava a brutalidade.
Hora do
pronunciamento oficial do meio da tarde. Todos pararam na fábrica e olharam
para o grande televisor. Zhalmyr aparece, faz sua referência e começa a falar.
Alana não se mostrava nem um pouco interessada em ver ou escutar o que o
charlatão falava, mas sentia sempre uma atração e ansiedade pelo evento. O
Soberano falava sobre estarem perto da vitória. Estavam às cercanias do Palácio
Real de Ishtar naquele exato momento e que era muito provável que a guerra
poderia vir a acabar naquele mesmo dia.
A euforia
era enorme. Até mesmo Alana se sentiu emocionada. Aliviada. Aquele ser humano
era um grande desgraçado, entretanto, a vida iria finalmente voltar ao seu
ritmo normal. As mulheres, emocionadas, choravam abraçadas e felizes, pois seus
queridos amores voltariam para casa afinal. Zhalmyr finalizou o discurso
liberando todo mundo do dia de trabalho, demonstrando total confiança de que
seu exército triunfaria.
Após certa
confusão, embalada pela alegria, todas conseguiram sair da fábrica. Todos os
bares e cafés da cidade abriram e o povo todo, predominantemente mulheres e
crianças, estavam nas ruas em expectativa.
Alana
encontrou o vovô em casa e saíram para comemorar a vitória quase certa.
Encontraram Leonôra e sua família: mãe e irmão caçula. Ela sentia que tinha
algo estranho na história toda. Logo creditou ao possível alívio imediato após
anos de apreensão e incertezas. De fato, desde que nasceu vivia sobre as
incertezas de uma guerra na qual a pouco mais de duas semanas passou a
desacreditar. Uma guerra retratada como épica nos livros de História.
Retratada, inclusive, como parte da cultura de Nombarath. Uma guerra arraigada
na mente dessas pessoas, que nascem e morrem sob um período incessante de
violência e bestialidade.
Mas, no
fundo, mesmo não querendo admitir, sabia que algo estava faltando. Não sabia
dizer o que. Era apenas um detalhe.
As
dezessete horas, um fato totalmente inédito, saiu então o tão esperado
veredicto: A glória de Nombarath sobre a queda de Ishtar. A populção foi pega
de surpresa. Alguns não assistiram o pronunciamento, pois não estavam
devidamente posicionados próximos a uma televisão, já que não era hora dela
ligar. Alana e Leonôra quase que, de tão avoadas e despreocupadas em meio as
comemorações antecipadas; em meio a embriaguez, liberada pelos responsáveis,
quase a perderam também. O telão da Plaza central acendeu. Logo em seguida
Zhalmyr, com os olhos marejados, deu a notícia, e dedicou a luta em memória da
adorada princesa Isabela. Disse que ninguém mais precisaria ir às fábricas até
o regresso dos soldados, porém, o campo, por ser o responsável pela produção
dos alimentos, deveria prosseguir, e seriam devidamente recompensados pelo
trabalho árduo. O Soberano agradeceu ao povo e se retirou, deixando e as TVs de
toda cidade apagaram instantaneamente, como de costume.
A noite
caiu e, quem não estava dormindo, cambaleava alcoolizado pelas ruas da cidade.
Alana e Leonôra estavam na Plaza central ainda, próximas ao chafariz com a
estátua de bronze da Princesa Isabela e conversavam. A euforia passara, pois
sabiam que Ranzo e Thânos não voltariam. Abraçaram-se e começaram a chorar.
Choraram copiosamente por minutos que não sabiam precisar. Quando conseguiram
se acalmar, decidiram ir para casa. Leonôra disse que não queria ficar sozinha,
dessa forma, Alana convidou-a para dormir em sua casa. Assim, aliviadas pelo
choro, felizes pelo fim histórico do conflito, e pela paz que reinaria, rumaram
para casa, para o merecido descanso. O Alcool já diminuíra seu efeito, mas,
assim que chegaram, tomaram um rápido banho e deitaram-se para dormir no quarto
da Alana.
Durante a
noite, Alana escutou barulhos, como pancadas secas em madeira e vidros
quebrando, advindos da rua. Estranhou aquilo e foi espiar.
Quando seus
olhos bateram na cena dantesca que acontecia na rua, seu sangue gelou. Eram
soldados. Soldados e mais soldados. Por toda a parte. Dezenas. Não. Centenas
deles. Centenas de soldados arrombando portas e quebrando vidros. Soldados de
Ishtar! Alana, com pavor na voz, correu e foi acordar a amiga.
- Acorda,
Leô! Acorda!!!
- O que
foi, infeliz?! Quer me matar de susto?! – Disse a amiga, acordando de
sobressalto.
- Soldados,
Leô... Soldados... Nas ruas... - Alana tremia dos pés a cabeça.
- Eles
chegaram? Eles chegaram?! – Sua voz ia adquirindo uma alegria gradualmente
crescente.
- Cala a
boca! – Alana falou com força, mas o som saiu abafado e se tornando agudo no
fim, enquanto fazia sinal pedindo silêncio. – São de Ishtar! De Ishtar!
- O que?!
- Vem comigo!
Temos que acordar o vovô! – Quando terminou de falar isso, um estrondo se fez
ouvir. Alguém arrombava a porta de sua casa.
- O que é
isso?! O que está avend... AAARGH! – Seu Nikolai foi interrompido por um sabre
atravessando seu peito. As meninas entenderam que se tratava de uma espada:
primeiro porque não houve um disparo, e segundo porque escutaram o barulho de
uma espada sendo desembainhada.
- Não
importa quem ou o que... Matem tudo o que se mover! – Disse uma voz grave e
enérgica vinda do andar de baixo – Ah, se for de seu agrado, senhores, façam o
que bem entender. – Disse com malícia e foi seguido por um coro de gargalhadas
de igual tom.
- Ai, meu
Deus! Ai meu Deus! – Repetia Leonôra. – Mataram o vovô... Mataram o vovô... –
concluiu.
Como que
saindo de um transe, Alana pegou a amiga pela mão e puxou-a com força. Por
sorte o escritório do vovô era no segundo piso. Aposento este que, antigamente,
era o quarto dos pais da menina. Seu Nikolai dormia na sala, pois dizia que não
conseguiria dormir nesse quarto, assim, Alana e ele transformaram a peça em um
escritório/oficina de carpintaria. Não era o ideal para uma oficina, mas
sofriam o mal de falta de espaço.
Chegando ao
escritório, Alana mexeu num livro. Era o errado. Amaldiçoou-se por não ter prestado
atenção na hora em que o agora falecido avô indicou qual o procedimento correto
a ser tomado. Tentou outro. Errado de novo.
- Estavas
certa, Lana... Tinha mesmo algo errado com aquilo tudo... – Falou em um estado
aparentemente catatônico e com a voz baixa.
- Merda!
Não é esse... Talvez esse?... MERDA! – acompanhou o tom baixo e não deu muita
bola para o que a amiga dizia e seguiu tentando.
- Eles
estão chegando... – falou com voz mais baixa ao ouvir que os homens subiam as
escadas.
- Não me
apressa porra! Merda, também não é esse! – “Tum... Tum... Tum...” os passos
furtivos dos sádicos.
- Lana...
Salve-se, por favor... – Leonôra foi em direção à porta.
- Cala a
boca! Volta aqui! Volta aqui! – Sussurrava com força e continuava buscando o
livro-chave correto, agora, sem muito critério para a seleção, puxando qualquer
um que estivesse mais próximo as mãos, e sem olhá-los, enquanto girava o resto
para falar com a amiga. – Sua retardada! Venha aqui! Venha aqui!
Leonôra fez
que não ouviu e saiu para o corredor.
Alana escutou os soldados
- Hum... Olá, boneca, qual o seu
nome?
- Le-Leonôra...
- Nombarathianos tem nomes
estranhos mesmo... Mas, veja só você... Não é nada mau, não concordam? – Os
demais riram. 0 Vem comigo. Eu nunca estive com uma loirinha antes.
Alana conseguiu abrir a passagem
e entrou nela, com todo o cuidado para não ser ouvida. O perfeccionismo do vovô
veio a calhar, uma vez que as dobradiças não rangeram e a estante/parede falsa
não arrastou no chão quando movida. Fechou e ali ficou. Deitada e com as duas
mãos tapando a boca, para melhor segurar o choro.
- Grita pra mim, grita... – Um
soldado falou com doçura na voz. – Mocinha... Não foi um pedido. Grita pra mim!
– Nada. Alana escutou um tapa. Leonôra gemeu. – EU MANDEI GRITAR! – O som
característico de uma espada sendo sacada. Leonôra gritou. – Isso! Assim que eu
gosto! Grita mais! – novo grito – GRITA MAIS! – novo grito.
- Agora é minha vez! – Uma outra
voz masculina.
- Ainda não terminei, não estás
vendo?!
- Foda-se, tem outros buracos.
Todos riram. Alana chorava.
Leonôra gritava. Portas arrombadas. Vidros quebrados. Meninas estupradas.
Meninos mortos. Velhos mortos. Incapazes mortos. Crianças mortas. Solo manchado
de vermelho.
Quando
raiou o dia, os soldados, não há muito, já haviam deixado a cidade. Alana saiu
do esconderijo. Correu soluçando em direção a amiga. Ela estava em seu quarto.
Seu corpo jazia ali. Sem vida. As lágrimas em suas bochechas ainda estavam
molhadas. Seu corpo possuía dezenas de cortes, sendo o fatal, uma perfuração na
boca do estômago. Lembrou-se do momento em que a amiga suplicava e do grito
mais horripilante que já escutara na vida, então associou a esta perfuração.
Deitou-se sobre o corpo nu da amiga e chorou copiosamente tudo o que teve de
ouvir calada a noite toda. Chorou pelo avô. No fim, chorou de raiva, por não
ter conseguido abrir a passagem secreta a tempo. Quando voltou a si havia
quebrado todo o quarto. Não sabia dizer se realmente tinha feito aquilo. Pensou,
inclusive, que tivesse pegado no sono. Não lembrava. Pegou a amiga no colo e
desceu as escadas. Iria fazer um funeral. Encontrou uma pá nas ferramentas do
avô, foi até o quintal e começou a cavar.
Quando voltava para o quarto,
notou que a casa estava intacta. Exceto pelo seu quarto, que ela mesma havia
destruído, e pela porta da frente arrombada, tudo estava no seu devido lugar.
Não entendeu.
Encontrou sua roupa preferida.
Deu um banho na amiga. Vestiu-a e a pôs na vala.
Enquanto tapava, chorava,
lembrando dos melhores momentos. Ia começar a cavar o túmulo do avô, quando a
sensação rotineira de que deveria estar indo para frente da televisão começou a
fluir. Sabia que estava próximo do horário do primeiro pronunciamento oficial
do dia. Sentia-se estranha. Largou a pá e foi para a sala. A TV ligou. O
anúncio de que essa mensagem estava sendo exibida em cadeia nacional apareceu.
Alana sentiu o conotativo estalo no cérebro. Era isso que faltara na véspera.
Apesar de não ter prestado atenção no que o Soberano dizia, tinha reparado que
essa mensagem não havia sido exibida. Perguntou-se o que esse desgraçado
vomitaria.
- Meus preciosos cidadãos e
cidadãs! Eu, seu querido soberano, Zhalmyr Aquilinoyev, terceiro de seu nome,
saúdo vocês por mais um importantíssimo, e vital, dia de trabalho em nossas
fábricas e lavouras. Muito obrigado! No ritmo em que estamos, mostraremos a
nação rival que não nos abatemos por causa dessa guerra. Guerra sagrada, da
qual sairemos vitoriosos! Nossa gloriosa nação Nombarath se manterá sólida para
todo o sempre. Esmagaremos todo e qualquer rato asqueroso de Ishtar feito
baratas! Tenham um bom dia de trabalho. Trabalhem com gana. Trabalhem com
garra! E juntos sairemos vitoriosos!
Alana começou a rir. Gragalhava.
Virou as costas e foi cavar o túmulo do avô. Deu-lhe um banho, vestiu-o com seu
melhor terno e enterrou.
Juntou suprimentos e roupas.
Colocou-os em uma mochila e em uma mala e partiu em direção ao reino neutro de
Marok. E enquanto caminhava pelas ruas da agora cidade fantasma de Namkarath,
percebeu que, salvo algumas janelas e portas quebradas, todas as construções
estavam intactas. E fediam a sangue.