sábado, 24 de agosto de 2013

Limbo

            Paulo não sabia onde estava. Não se lembrava de ter saído de casa naquele dia. Sabia que era quarta-feira, o dia estava ensolarado, os pássaros piavam, mas não se lembrava de ter saído do conforto de seu lar.
            Era um imenso corredor com um tapete vermelho, semelhante ao desses eventos de gala, com uma borda dourada, deixando descoberto uma faixa de menos de um palmo de largura nas laterais, que revelava um piso de pedras cinzentas acuradamente cortadas do mesmo tamanho. As paredes eram verde musgo e tinha uma janela em cada lado na metade do corredor. Supunha que era a metade, pois não enxergava nem o início e nem o fim da peça, apenas uma densa escuridão. O sol estranhamente entrava sob a mesma angulação e sentido nas duas janelas, de fora para dentro, projetando sombras bruxuleantes das cortinas de seda tão fina que pareciam transparentes, ao ritmo suave de uma refrescante brisa, que, assim como os raios de luz, projetava-se para dentro do ambiente convergindo para dentro do mesmo.
            Decidiu, então, caminhar para frente. Todavia, conforme caminhava, parecia não sair do mesmo lugar. As janelas permaneciam sempre à mesma distância, como se ao caminhar, o corredor se alongava. E mais, quanto mais progredia, mais intensa a brisa, que entrava pelas janelas, se tornava e, mais fraca a luz do sol ficava. Cada vez mais sem entender o que se passava, Paulo se desesperava. Começou a suar frio e sua respiração estava descompassada. Girou sobre os calcanhares e começou a correr. Corria como nunca o fizera na vida. Apenas notava que a luz diminuía cada vez mais e a brisa havia se transformado numa ventania. Olhou para trás e... SURPRESA! Era como se não tivesse se movido um centímetro sequer. Ali estavam as janelas e as malditas cortinas transparentes...? Não, elas não eram mais transparentes. Estavam adquirindo uma tonalidade bordô. Mas o que estava acontecendo?! Exaurido, o rapaz se curvou, colocando as mãos nos joelhos. Arfava e o suor escorria pelo rosto, juntando-se no queixo e caindo em forma de uma única gota grossa no chão. Reparou que seu suor estava formando uma poça negra no chão. Não era o tapete molhado que ficou mais escuro, mas sim uma poça negra como piche. Paulo caiu sentado. “O que é isso, meu Deus?!”, balbuciava repetidamente sem se dar conta que o fazia. A poça começou a se espalhar, como se tivesse criado vida. Ela se alastrava pelo chão e pelas paredes e subia para o teto. Em pouco tempo cobriu todo o corredor, pelo menos, tudo o que Paulo conseguia ver.
            Nesse ínterim, a brisa só aumentava e a luz do sol ia embora, trazendo mais e mais penumbra.
            Assim, o rapaz ficou imerso numa escuridão completa. Sentia a textura viscosa da poça, mas ela não parecia sujá-lo. Sentia – e ouvia – que ela borbulhava, mas não queimava.
            Começou a ouvir um ruído que parecia um gemido. Paulo tentava se manter são, tentava se manter, pelo menos, calmo, na verdade. Agora repetia: “acorda, acorda, acorda, acorda, acorda”, porém, sem sucesso. O gemido agora era alto. O jovem fechou os olhos e fazia o sinal da cruz e começava a balbuciar algum tipo de reza. Então, o gemido parou. Paulo estranhou e ficou em silencio por um tempo, mas mantinha os olhos fechados. Sentiu que o vento havia cessado também. Abriu lentamente os olhos. A luz do luar agora banhava o recinto. O negro havia sumido, deixando, no entanto, as paredes, o teto, e o tapete totalmente degradados, como se haviam envelhecido décadas: buracos, mofo e tinta descascada. As cortinas tinham uma tonalidade escarlate, mas estavam igualmente degradadas e mofadas.
            Da escuridão à frente, percebeu que uma silhueta vinha em sua direção. Junto com essa forma, retornaram os gemidos. O coração do rapaz disparou. Já não se perguntava mais o que estava acontecendo e nem onde estava. Essas, cada vez menos, eram suas consternações. A silhueta ganhava formas mais distinguíveis conforme se aproximava da luz azulada do luar. O gemido agora carregava junto um choro sofrido. Um choro de profunda agonia. Pelo tom, parecia ser uma mulher... Não, uma menina. Agora era possível ver que uma menina, de longos cabelos lisos e negros como a noite, escorridos na frente do rosto, que também era coberto por suas duas mãos, e vestida com uma longa camisola branca, poderia ser a fonte de tais sons fantasmagóricos. “Poderia” e “fantasmagóricos” porque, apesar de estarem ali apenas Paulo e essa nova personagem, os sons não pareciam vir dela. Ao chegar no meio do corredor e perfeitamente entre as duas janelas, a menina, que, agora, melhor visível do que nunca, estacou. Um breve silêncio se fez. Paulo se levantou e tentou falar com a menina, perguntou o que estava acontecendo e onde estavam. Nenhuma resposta. Ela aparentava ter dezesseis anos. Paulo deu um passo à frente, insistindo com suas perguntas. Ela baixou os braços, fazendo-os penderem ao lado do seu corpo. Os choros e gemidos retornaram mais altos do que nunca, e com um adicional: gritos. Gritos hediondos de todos os tipos. Gritos de desespero, gritos de agonia, gritos de pavor, de morte, de loucura... Risadas! Sim, risadas macabras e histéricas da loucura provocada pelo desespero. Os sons pareciam vir de tudo que era direção. Pareciam brotar das paredes, do chão, do teto, das cortinas, do luar, da camisola da menina, da própria menina que se mantinha inerte e com os braços pendidos ao seu lado.
            Paulo buscou toda a coragem e sanidade que lhe restava e tentou dar um novo passo a frente. O sucesso lhe deu coragem para prosseguir. Mais um, e outro, mais outro. Dessa vez os passos o faziam chegar mais perto das janelas e da garota. Quando se aproximou dela, percebeu que uma mancha vermelha se formava na altura do seio esquerdo da menina. Era sangue. Paulo correu em direção à menina e, assim que estava perto o suficiente para toca-la, ela é soerguida misteriosamente do chão e, projeta um urro gutural seguido de estalos, que pareciam um único e grave, vindo de cada osso de seu corpo e desabou, como se o seu corpo havia perdido a vida que possuía, como uma marionete na qual cortaram suas cordas, com os membros todos dobrados em ângulos totalmente incorretos. O caos formado com os choros, gritos e gemidos cada vez mais aumentava em quantidade de vozes e altura do som. O sangue vazava rapidamente, formando uma enorme poça no chão. Paulo se debruçou sobre a menina, tentando reanima-la. Quando tocou com o joelho no chão, percebeu que havia um leve relevo. Estranhou e rapidamente levou os olhos até o local. Era o rosto de uma criança. O rapaz gritou e levantou rapidamente, escorando-se na parede. Do ângulo que estava, conseguia olhar para o lado de fora através da janela. Nada além de uma relva e escuridão. Sentiu algo gelado tocar sua perna. Sobressaltado, olhou para baixo e viu uma mão... Duas, cinco, oito, treze e cada vez mais e mais braços e mãos saindo das paredes. Paulo pulou para o centro do corredor, onde os braço não poderiam lhe alcançar. Sentiu que pisava novamente em alguns tipos de caroços, e percebeu que aquele único rosto, agora havia se multiplicado em centenas. Centenas de rostos de crianças, adultos, homens, mulheres, velhos... Os gemidos cada vez aumentavam mais. Paulo não conseguia mais suportar o barulho e acabou caindo atordoado no chão, tentando tapar os ouvidos. Percebeu que a menina se sentou desengonçadamente e Parecia que ela recolocava os membros no lugar. Era como se fossem mãos invisíveis que a montavam. O rapaz tremia. Sentia que o pingo de sanidade, o qual tentava a todo custo se agarrar, escapava lentamente por entre seus braços. Sentia a textura da razão, gelada como argila, vazar por entre seus dedos, conforme apertava, tentando mantê-la ali, no seu devido lugar. A menina engatinhou até ele. Seus olhos estavam estalados e ela não parecia olhar para ele. Olhava em sua direção, mas, não pareciam olhar para ele. Ela girava a cabeça levemente para a esquerda, e depois levemente para a direita. Então, seus olhos adquiriram uma serenidade perturbadora, e os lábios uma inocência encantadora e o sorriso que se projetava por eles não exibiam emoção nenhuma. Paulo se encolhia em posição fetal. Os olhos da menina começaram a ser consumidos por chamas negras. Seu sorriso se tornou em uma risada, que se transformou em gargalhada. Paulo sentia um cheiro de enxofre saindo da boca da garota. O cheiro tornava a respiração praticamente impossível.
O rapaz gemia. Desespero, agonia, pavor... Loucura. Paulo não sabia o que estava na sua frente. Paulo não sabia mais quem era Paulo. Paulo não sabia mais se hoje era quarta-feira ou se era domingo. Paulo não era mais nada e nada mais era Paulo. Paulo gritava. Paulo tentava agarrar o que quer que fosse, o que quer que estivesse a sua frente, ao seu alcance, para tentar sair dali, mas não conseguia. Sentia alguém pisando em seu rosto. Via alguém tentando acudir uma jovem menina caída macabramente no meio de um corredor com paredes verde musgo e tapete vermelho, todo mofado e esburacado.

Palavras não se formavam mais no que sobrara de sua consciência, apenas gritava, chorava, gemia, puro desespero, agonia e loucura

sábado, 17 de agosto de 2013

O Autoflagelo de Quintos

            Estava tudo calmo no centro de comando quando, de repente, o alarme dispara. O caos toma conta. Soldados com seus uniformes brancos correm de um lado para o outro, profissionais altamente especializados no maquinário tomam seus lugares, e o general sai de dentro de sua sala, com um copo com uma dose de whisky vagabundo (com gelo) na mão direita e um charuto na esquerda.
            - Capitão Ribons! Situação? – Grita o arrogante general.
            - Senhor, a fricção externa está causando um aumento da pressão e a temperatura está aumentando gradualmente. Ainda é estágio inicial.
            - E os novos recrutas?
            - Estão se preparando para a missão.
            - E o canhão?
            - Já está sendo erguido. Neste exato momento em que falamos, um destacamento está se encarregando da preparação para o disparo.
            - Muito bem, capitão. Não me decepcione. Já erramos o alvo incontáveis vezes somente nessa semana. E o nosso retrospecto geral não é nada bom também.
            Nesse momento, o tenente Baahls se aproxima e interrompe a conversa.
            - Senhor – bateu continência – temperatura e pressão estão se aproximando dos níveis críticos. Canhão preparado e pronto para disparar.
            - E os recrutas? – Perguntou o general, sem muita paciência.
            - Ainda não estão prontos – rebateu de forma cordial.

            Nesse momento, recruta Zé conversava com um companheiro de batalhão. Estava excitado, muito ansioso e confiante.
            - Dessa vez vamos conseguir. Tenho certeza que o nosso pelotão vai dar glória a essa unidade.
            - Como pode ter tanta certeza? Até hoje essa unidade nunca acertou o alvo. Pra falar a verdade, eu nem sei o que estou fazendo aqui.
            - O general já traçou o plano, você estudou ele?
            - General... Enquanto o supremo comando não se der conta que só erramos por causa deles mesmo... Não há general que consiga traçar um bom plano.
            - O que quer dizer?
            - Quero dizer que, provavelmente, é mais uma missão suicida.
            - Como pode ter tanta certeza?
            - Antes de vir para esse regimento, já vi vários contando glórias de que seriam os primeiros a acertar o alvo, mas nunca chegaram nem perto. Não pode ser culpa de cada um de nós recrutas e...
            O general invade a sala e começa a berrar ordens.
            - Vamos, seus vermes incompetentes! Estamos prestes a disparar e não tem metade de vocês na estação de lançamento! Seus imprestáveis! – Assim, os recrutas, em total caos, correm para as saídas em direção a estação de lançamento. Zé segue a conversa com o colega.
            - Decorou o mapa? – Perguntou.
            - Nem me dei o trabalho.
            - Nossa, cara, nossa missão é de extrema importância... Devias te orgulhar... Olha aqui, eu fiz uma cópia para mim, apesar de ter decorado já, queres?
            - Tanto faz... – O colega pegou o mapa e o guardou no bolso do uniforme.
            Na estação de lançamento, o capitão Ribons, utilizando-se de um megafone, passava as últimas instruções, dividindo os recrutas em pelotões. Zé e o amigo ficaram no segundo grupo.
            - O canhão não suporta que todos vocês sejam lançados ao mesmo tempo, assim, pelas nossas contas, serão necessários três disparos para enviá-los ao território. Por uma maior chance de sucesso, os dois primeiros disparos terão a capacidade máxima permitida, o último grupo estará mais desfalcado, mas não será problema, uma vez que os dois primeiros grupos já deixarão o caminho mais limpo e também recursos extras. Se necessário, utilizem-nos. Uma boa sorte a todos e honrem o uniforme que vocês vestem! – Assim, um grande grito de “URRAAA!” ecoou pela estação de lançamento.
            - Capitão, pressão está em noventa e nove por cento. É agora. – Um sargento informou Ribons.
            - Aos seus postos! Aos seus postos! – Berrou no megafone, depois virou para o tenente Baahls e avisou-o, dessa vez sem o uso do megafone – Ao meu sinal... – Olhou para o General que aguardava observando os níveis de pressão em uma espécie de barômetro analógico. Cinco segundos depois, o general fez o sinal, e o capitão deu a ordem.
            O primeiro pelotão foi lançado pelo canhão e, menos de um segundo depois, o pelotão do recruta Zé é projetado.
            Zé recordava o mapa e todas as instruções e do treinamento de esquiva dos produtos químicos. Estava confiante. Foi despertado de suas memórias quando uma enorme força o fez voar pelo canhão. Feliz, ele se preparou para a aterrissagem... Quando saiu pelo canhão, observou que o ambiente encontrado não era o esperado. Estava voando pelos ares, em direção a um oceano infinito. Assustado e sem saber como reagir, acabou se chocando contra a água. O desespero dos pelotões era evidente. Não tinham sido treinados para isso. Não se alistaram para isso. Alguns pediam por suas mães. Outros se afogavam. O caos. O terceiro batalhão chegou e tiveram a mesma surpresa e a mesma sina. Zé lutava para se manter flutuando.

            De repente um barulho infernal, como o de mil bombas estourando ao mesmo tempo e, em seguida, um redemoinho colossal começou engolir a tudo e a todos. Os homens gritavam. Milhares. Não. Milhões de jovens soldados foram arremessados para morrer por causa de uma falha no plano do Supremo Comando. O nível da água começou a baixar a uma velocidade impressionante. Zé, em seus últimos suspiros de vida avistou uma caverna, para onde toda a água estava sendo levada e, em seguida, tudo escureceu.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

As Crônicas de Folsom - Passos Perdidos

            Estava escuro. Muito escuro. Luana havia se perdido naquela floresta. Escuridão total. Olhava para o céu. Não havia estrelas. Não havia Lua. Apenas o negro, o vazio, a imensidão do nada. Olhava para frente. Nada. Olhava para o chão. Nem os pés enxergava. Sabia que eles estavam ali, todavia. Sabia disso porque doíam. Perdera a noção do quanto andou por lá. Curiosamente não conseguia lembrar quando se perdeu, e nem como se perdeu. Recordava de estar ali, perdida. Entretanto, não era amnésia. Lembrava do seu nome, da sua idade, de como era quando tinha dez anos, quatorze anos, dezesseis e dezoito anos, de suas alegrias, sonhos, desejos... Enfim, tinha plena ciência de suas memórias.
            No entanto, não sabia onde estava ou para onde ia. Esbarrou em uma árvore. Levou as mãos ao rosto, tateando-o para se certificar de que tudo estava onde deveria estar. Sentou-se. Continuava com as mãos no rosto. Começou a chorar. Soluçava a pobre alma. Desespero e exaustão vertiam por aqueles lindos olhos castanhos, acompanhando as lágrimas.
            Após um tempo que não conseguia precisar, acalmou-se. O choro aliviara um pouco a alma. Concentrou-se para tentar acostumar os sentidos à escuridão. Percebeu que o lugar era mais macabro do que pensara. Tinha certeza de que se tratava de uma floresta – ou bosque -, pois lembrava de adentrá-la, daquela entrada macabra, onde as árvores formavam uma espécie de passagem, levando a um corredor sombrio, que a cada passo escurecia. Logo em seguida tentou fazer o caminho inverso, porém, não encontrou mais a saída. Tendo essa certeza de que se encontrava em uma espécie de bosque, não conseguia escutar os sons da fauna. Na verdade os únicos sons que conseguia ouvir eram o do vento agitando as árvores, e os seus passos. Percebeu, assim que inspirou com força, que, gradualmente, seus sentidos estavam lhe falhando. O cheiro forte e penetrante do capim e da terra, agora não passavam de leves fragrâncias sentidas a uma distância considerável. Não sentia mais o contato de suas mãos em seu rosto. Sua boca, agora, era como um grande buraco recheado de nada. Nem a saliva sentia. Tocou sua língua. Ou, pelo menos, pensava ter feito isso. Nada. Silêncio. Silêncio... Silêncio... Não lembrava de jamais ter testemunhado tamanha ausência de ruídos, então, gritou a plenos pulmões. Ou pelo menos fez os movimentos... Ou não. Simplesmente não sabia se havia obtido êxito. Não sabia mais se estava sentada, se estava deitada ou de pé. O que lhe confirmava que ainda existia era sua capacidade de pensar. Tinha consciência. Tinha medo, pavor, desespero... Lembrou-se novamente de seus sonhos, de seus desejos... De suas ânsias...
            Mais uma vez perdeu a noção do tempo. Com o que restou de sua existência, ordenou que suas pernas se movessem. Ainda não sabia se a ação tornou-se concreta ou se era apenas uma mera abstração de um sopro de ser. Talvez sim, talvez não. Não esbarrou em nada, pelo menos. Será?
            Acreditava que andava. Já sem esperanças, as mágoas, arrependimentos... Tudo o que havia deixado de fazer, o que fez e jamais queria ter feito, passavam em sua mente como um filme. Pedia perdão, mas não obtia resposta. Suplicava. Ainda sem resposta.
            Inimagináveis e imensuráveis momentos depois decidiu que “tanto fazia”. Havia fugido durante toda a vida daquilo tudo e, quando chegou ao ponto de implorar o perdão divino, ficara sem uma maldita resposta. Relembrou outra vez seus sonhos e seus desejos. Agarrou-se ferrenhamente a eles. Sentiu que algo mudava dentro de si e ao seu redor.
            Continuava sem enxergar nada, mas o som... Os sons, melhor dizendo, voltavam lentamente. Sentiu um leve cheiro de terra molhada. Em seguida, o do capim. Dormência. O corpo todo estava dormente agora, formigava.
            Passos. Escutou passos. De todos as direções. Inclusive acima e abaixo de si.
            Ao seu redor, uma luz começou a brilhar. Conseguia enxergar parcamente o que havia a sua frente. Apenas borrões que, aos poucos, tornavam-se nítidos. Visualizou uma silhueta a sua frente. Ela projetava uma sombra enorme no chão. A imagem dele e de tudo o que ele representa para si se formava em sua mente. Rápida e surrealmente a distância entre ele e ela aumentou, tornando-o apenas uma mancha em uma clareira ao longe.
            Luana começou a correr. Corria desesperadamente. Finalmente achou o caminho. Agora era um belo dia e, à medida que avançava, a floresta ia ficando para trás, o céu azul se tornava perceptível acima da copa das árvores. Todos os sons da fauna que aquele bosque podia conter também passaram a serem pronunciados, acompanhando o desesperador ruído do vento e dos passos.
            Via ele ao longe. Por mais rápido que corresse, a aproximação era lenta. Beirando a exaustão, lembrou-se outra vez de seus sonhos e de seus desejos, principalmente do último: o de estar ao lado dele. Encontrou as energias necessárias e se pôs novamente a correr.
            - Finalmente! Finalmente te alcancei! – Disse a garota exausta ao chegar perto do rapaz. Exausta e eufórica.
            - Que pena que chegasse só agora... – Ele respondeu.
            - Como assim? – Indaga sem entender o que se passava.
            - É que eu preciso subir aquela colina agora. – E disparou a toda velocidade.

            Luana ficou ali. Parada. Sentindo as pernas tremerem. E sem olhar para trás, ele a abandonou, levando consigo todos os sonhos, desejos e memórias.


*Baseado em "Montreal - Passos Perdidos"

domingo, 11 de agosto de 2013

Na caneta a loucura

Me deparei com um circulo
Todos um dia irão
Ele representa um ciclo
Imposto a todos que aqui estão

Fugi e corri
Dormi e acordei
Procurei por algo
Que eu nunca encontrei

O horizonte nunca foi claro
Sem uma linha
Sempre distante
Sentindo-me solitário

O papel é a terapia
Na caneta a loucura
É como Freud na teoria
A drogadição como desculpa
Ganha formas na escrita

terça-feira, 6 de agosto de 2013

As Crônicas de Folsom - Fonográfica (pt.2 de 2)

            - Onde estávamos? – perguntou Frank.
            - Ias me falar quem teria interesse na morte do cara.
            - Os donos dos artistas, Jack. As gravadoras.
            - Aahh... Mas continuo sem entender o motivo de matar... Não tenho nada o que ver com isso, porém apenas não entendo.
            - Você já estudou na escola sobre aqueles grandes pintores antigos, como Picasso, Da Vinci e companhia, certo?
            - Faz tempo...
            - Não importa. Tu sabes que a maioria desses caras viveu num certo ostracismo, certo?
            - É...
            - E que os quadros deles, quando eram vivos, não valiam um tostão furado. Os que ficaram famosos ainda vivos conseguiam vender suas pinturas por uma boa quantia, mas... Sabe o valor da Monalisa?
            - Nem ideia.
            - Bem, eu posso te assegurar que não cabe num cheque, por causa dos zeros.
            - Acho que estou começando a entender.
            - Isso mesmo. O fato de matar o infeliz... No mundo artístico não funciona do mesmo jeito que no nosso – fez um gesto com os dedos indicando aspas – mundo. O Jack morre, e não temos mais o nosso melhor profissional. Ficaríamos desfalcados. Agora no Showbusiness... Ninguém vai substituir o polaco e é isso que eles querem mesmo. Já imaginou o que eles não vão ganhar com álbuns póstumos, as famosas faixas perdidas do álbum tal, coletâneas, camisetas, filmes, livros...
            - Mas a lei não dá direito dos lucros para a família dele e etc?
            - Como que tu achas que eu consegui a chave da casa dele?
            - Tá me dizendo que a mulher dele...
            - É isso aí... Pelo que eu soube, eles dividiram a grana e, com certeza, isso vai dar merda mais pra frente, entretanto, como eu te disse anteriormente, não nos interessa. Fomos contratados para executar. O problema é deles se der errado.
            - Nunca cogitou que, na hora do aperto, caso uma coisa dessas viesse à tona, eles mandassem fogo pra cima da companhia? – Frank deu uma risada.
            - Jack... Jack... Eles não seriam loucos... Sempre tem alguém querendo ganhar alguma coisa em cima de alguém... E se eles se fresquearem um dia... Nós conhecemos caras como você que aceitariam fazer um belo serviço. E eles sabem disso.
            - E se alguém se recusar? – Frank parou e abriu um sorriso malicioso para o assassino.
            - Nós sabemos onde vocês moram.
            Jack tentou esconder com um sorriso amarelo que a sutil ameaça havia surtido efeito. Por sorte a garçonete chegou trazendo seus pedidos. Ambos comeram em silêncio. Frank fumou mais um cigarro, então entregou um pacote para o algoz, uma nota de vinte dólares para o café mais a gorjeta para a garçonete/fã abalada pela morte do ídolo, como um alento ao sofrimento da pobre menina, depois, levantou e saiu. Jack pegou o jornal e começou a ler.
            Queria ter podido estourar os miolos do gordo presunçoso, mas estava satisfeito. O dinheiro daria para passar o ano sem se preocupar muito. Olhou os classificados, procurando se tinha algum emprego interessante. Não achou nada.

Levantou e foi embora.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

As Crônicas de Folsom - Fonográfica (pt. 1 de 2)

            Jack havia chegado em casa depois de um longo dia no trabalho. Era tarde da noite. Os filhos, Brenda e J.J. já estavam dormindo. Largou a pasta em cima do console, que fica ao lado da porta de entrada, e o sobretudo no cabideiro. Era início de abril, o que significa que a primavera estava recém começando em Seattle, não que isso queira dizer muita coisa, afinal, temperaturas baixas são constantes, mas nada que o sistema de calefação da casa não pudesse resolver. Jack largou as chaves também em cima do console e começou a subir as escadas, tentando fazer com que os passos exaustos e pesados não acordassem as crianças.
            Chegando ao segundo andar, notou que a porta do seu quarto estava aberta e que o inconfundível brilho de uma TV acesa num ambiente escuro pulsava. Com calma foi até lá e encontrou a esposa – Mônica – adormecida sobre a cama. Chegou ao batente da porta, escorou-se e amaldiçoou-se pela falta de sorte. A bela morena, que manteve o corpo esbelto e sensual, mesmo após duas gravidezes, esperava por seu marido, vestindo uma lingerie nova. Era uma baby doll branca de seda e a calcinha, também branca, de rendinha. Ela até estava usando uma gargantilha preta, o acessório favorito de Jack. Tudo indicava que a noite seria daquelas para serem lembradas... Frustrado, tomou seu banho, amaldiçoou o merda do cantorzinho que teve que matar, e teve que contentar-se em dormir de conchinha com a esposa.
            No dia seguinte, Jack aguardava Frank no lugar combinado: um café defronte a estátua de Jimi Hendrix, mas na calçada oposta. O lugar estava movimentado, como sempre, e Jack estava ficando sem paciência com o atraso do contratante.
            - Fez um belo trabalho, heim, Jack. – Frank largou o jornal do dia com a manchete principal “Astro do Rock é encontrado morto na própria casa” em cima da mesa. Jack consultou o relógio e não fez questão de olhar para o homem.
            - Está atrasado.
            - E daí? O interesse é todo seu, meu camarada.
            - Trouxe a grana? – ignorou o comentário do sujeito baixo, gordo e com uma careca bem no topo da cabeça, rodeada por ralos fios loiros, que trajava uma jaqueta azul marinho.
            - E alguma vez eu esqueci?
            - Por que demorou?
            - Está brincando, certo? – Frank se sentou, tateou os bolsos atrás do maço de cigarros e do isqueiro, acendeu, deu uma baforada para o alto, se inclinou e baixou o tom de voz, enquanto Jack sorvia um gole de café. – Você acaba de matar o maior astro rock da atualidade, febre mundial dos últimos cinco anos e não quer que eu não pegue um congestionamento de trânsito devido a manifestos de luto protagonizados pelo seu bando de fãs retardados?
            - Eu não peguei engarrafamento nenhum.
            - Ah, não me amola, Jack. Como eu disse, o interesse é todo seu. Você é quem tem que esperar eu chegar com a grana, que não é pouca, diga-se de passagem.
            - Escuta aqui, seu gordo careca de merda, ontem eu perdi o que foi, provavelmente, uma das melhores fodas que eu daria com a minha esposa por causa desse polaquinho de merda que vocês quiseram enterrar. – Frank começou a rir.
            - Calma, Jack. Calma... Não desconte em mim... Eu sou o cara das boas notícias, lembra? Eu te dou o recado e te recompenso pelo seu belo trabalho. Olha, o cara que tinha que morrer... A culpa é dele que você não comeu a sua mulher e... Veja bem, você já se vingou dele antecipadamente, e eu estou te pagando por isso. – Jack não pôde deixar de concordar com o homem, inclusive amoleceu a expressão do seu rosto. – Isso, agora está melhor... – emendou ao ver a expressão se afrouxar - Olha, vou deixar ainda melhor. Escolhe o que quiseres pra comer. Nós pagamos. Fica por conta da Fonográfica. Que tal?
            - Certo, Frank... Tudo bem... Mas, eu não entendo, cara... Se o sujeito era tão bom, porque vocês decidiram matá-lo? Agora ele, obviamente, não vai mais poder fazer nada novo, entende?
            - Olha, eu não devia te contar isso, cara, porém, nos conhecemos já faz dez anos... Não vejo problemas... Enfim, vamos lá: a verdade é que, não nos interessa.
            - Como assim?
            - Jack, não somos nós quem decide quem morre. Nós somos que nem você, meu camarada. Nós somos apenas o fragmento que age. Quem decide são os próprios donos desses sujeitos.

            - Não estou entendo. – Uma garçonete se aproximava, os homens trocaram o assunto por outro cheio de trivialidades para disfarçar. A menina, loira, dezesseis anos, usando uma camiseta preta com o rosto do cantor assassinado, estava visivelmente abatida e perguntou o que ambos iriam comer. Jack pediu um sanduíche de carne e Frank apenas um café bem forte. Ambos tiveram que repetir, porque ela não parecia prestar atenção. Só quando tiveram certeza de que ela não poderia ouvi-los, retomaram a conversa.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Ensandecência

A sombra de fogo negro
interna e demoníaca
espreita e espera a vazão

Por vezes extrapola e derrama
Refletindo no espelho da mente
Tomando o Ser
o Eu

A sombra de fogo negro
de olhos escarlate e garras invisíveis
abraça devagar
rasga em instantes
e sorri com lágrimas de sangue

Destrói e corrói
Debocha e zomba

Fala

e fala
e fala

e fala...

Com seu abraço
sobra uma carcaça
concha abandonada
em busca de algo perdido
que nunca se importou de ter