sábado, 24 de agosto de 2013

Limbo

            Paulo não sabia onde estava. Não se lembrava de ter saído de casa naquele dia. Sabia que era quarta-feira, o dia estava ensolarado, os pássaros piavam, mas não se lembrava de ter saído do conforto de seu lar.
            Era um imenso corredor com um tapete vermelho, semelhante ao desses eventos de gala, com uma borda dourada, deixando descoberto uma faixa de menos de um palmo de largura nas laterais, que revelava um piso de pedras cinzentas acuradamente cortadas do mesmo tamanho. As paredes eram verde musgo e tinha uma janela em cada lado na metade do corredor. Supunha que era a metade, pois não enxergava nem o início e nem o fim da peça, apenas uma densa escuridão. O sol estranhamente entrava sob a mesma angulação e sentido nas duas janelas, de fora para dentro, projetando sombras bruxuleantes das cortinas de seda tão fina que pareciam transparentes, ao ritmo suave de uma refrescante brisa, que, assim como os raios de luz, projetava-se para dentro do ambiente convergindo para dentro do mesmo.
            Decidiu, então, caminhar para frente. Todavia, conforme caminhava, parecia não sair do mesmo lugar. As janelas permaneciam sempre à mesma distância, como se ao caminhar, o corredor se alongava. E mais, quanto mais progredia, mais intensa a brisa, que entrava pelas janelas, se tornava e, mais fraca a luz do sol ficava. Cada vez mais sem entender o que se passava, Paulo se desesperava. Começou a suar frio e sua respiração estava descompassada. Girou sobre os calcanhares e começou a correr. Corria como nunca o fizera na vida. Apenas notava que a luz diminuía cada vez mais e a brisa havia se transformado numa ventania. Olhou para trás e... SURPRESA! Era como se não tivesse se movido um centímetro sequer. Ali estavam as janelas e as malditas cortinas transparentes...? Não, elas não eram mais transparentes. Estavam adquirindo uma tonalidade bordô. Mas o que estava acontecendo?! Exaurido, o rapaz se curvou, colocando as mãos nos joelhos. Arfava e o suor escorria pelo rosto, juntando-se no queixo e caindo em forma de uma única gota grossa no chão. Reparou que seu suor estava formando uma poça negra no chão. Não era o tapete molhado que ficou mais escuro, mas sim uma poça negra como piche. Paulo caiu sentado. “O que é isso, meu Deus?!”, balbuciava repetidamente sem se dar conta que o fazia. A poça começou a se espalhar, como se tivesse criado vida. Ela se alastrava pelo chão e pelas paredes e subia para o teto. Em pouco tempo cobriu todo o corredor, pelo menos, tudo o que Paulo conseguia ver.
            Nesse ínterim, a brisa só aumentava e a luz do sol ia embora, trazendo mais e mais penumbra.
            Assim, o rapaz ficou imerso numa escuridão completa. Sentia a textura viscosa da poça, mas ela não parecia sujá-lo. Sentia – e ouvia – que ela borbulhava, mas não queimava.
            Começou a ouvir um ruído que parecia um gemido. Paulo tentava se manter são, tentava se manter, pelo menos, calmo, na verdade. Agora repetia: “acorda, acorda, acorda, acorda, acorda”, porém, sem sucesso. O gemido agora era alto. O jovem fechou os olhos e fazia o sinal da cruz e começava a balbuciar algum tipo de reza. Então, o gemido parou. Paulo estranhou e ficou em silencio por um tempo, mas mantinha os olhos fechados. Sentiu que o vento havia cessado também. Abriu lentamente os olhos. A luz do luar agora banhava o recinto. O negro havia sumido, deixando, no entanto, as paredes, o teto, e o tapete totalmente degradados, como se haviam envelhecido décadas: buracos, mofo e tinta descascada. As cortinas tinham uma tonalidade escarlate, mas estavam igualmente degradadas e mofadas.
            Da escuridão à frente, percebeu que uma silhueta vinha em sua direção. Junto com essa forma, retornaram os gemidos. O coração do rapaz disparou. Já não se perguntava mais o que estava acontecendo e nem onde estava. Essas, cada vez menos, eram suas consternações. A silhueta ganhava formas mais distinguíveis conforme se aproximava da luz azulada do luar. O gemido agora carregava junto um choro sofrido. Um choro de profunda agonia. Pelo tom, parecia ser uma mulher... Não, uma menina. Agora era possível ver que uma menina, de longos cabelos lisos e negros como a noite, escorridos na frente do rosto, que também era coberto por suas duas mãos, e vestida com uma longa camisola branca, poderia ser a fonte de tais sons fantasmagóricos. “Poderia” e “fantasmagóricos” porque, apesar de estarem ali apenas Paulo e essa nova personagem, os sons não pareciam vir dela. Ao chegar no meio do corredor e perfeitamente entre as duas janelas, a menina, que, agora, melhor visível do que nunca, estacou. Um breve silêncio se fez. Paulo se levantou e tentou falar com a menina, perguntou o que estava acontecendo e onde estavam. Nenhuma resposta. Ela aparentava ter dezesseis anos. Paulo deu um passo à frente, insistindo com suas perguntas. Ela baixou os braços, fazendo-os penderem ao lado do seu corpo. Os choros e gemidos retornaram mais altos do que nunca, e com um adicional: gritos. Gritos hediondos de todos os tipos. Gritos de desespero, gritos de agonia, gritos de pavor, de morte, de loucura... Risadas! Sim, risadas macabras e histéricas da loucura provocada pelo desespero. Os sons pareciam vir de tudo que era direção. Pareciam brotar das paredes, do chão, do teto, das cortinas, do luar, da camisola da menina, da própria menina que se mantinha inerte e com os braços pendidos ao seu lado.
            Paulo buscou toda a coragem e sanidade que lhe restava e tentou dar um novo passo a frente. O sucesso lhe deu coragem para prosseguir. Mais um, e outro, mais outro. Dessa vez os passos o faziam chegar mais perto das janelas e da garota. Quando se aproximou dela, percebeu que uma mancha vermelha se formava na altura do seio esquerdo da menina. Era sangue. Paulo correu em direção à menina e, assim que estava perto o suficiente para toca-la, ela é soerguida misteriosamente do chão e, projeta um urro gutural seguido de estalos, que pareciam um único e grave, vindo de cada osso de seu corpo e desabou, como se o seu corpo havia perdido a vida que possuía, como uma marionete na qual cortaram suas cordas, com os membros todos dobrados em ângulos totalmente incorretos. O caos formado com os choros, gritos e gemidos cada vez mais aumentava em quantidade de vozes e altura do som. O sangue vazava rapidamente, formando uma enorme poça no chão. Paulo se debruçou sobre a menina, tentando reanima-la. Quando tocou com o joelho no chão, percebeu que havia um leve relevo. Estranhou e rapidamente levou os olhos até o local. Era o rosto de uma criança. O rapaz gritou e levantou rapidamente, escorando-se na parede. Do ângulo que estava, conseguia olhar para o lado de fora através da janela. Nada além de uma relva e escuridão. Sentiu algo gelado tocar sua perna. Sobressaltado, olhou para baixo e viu uma mão... Duas, cinco, oito, treze e cada vez mais e mais braços e mãos saindo das paredes. Paulo pulou para o centro do corredor, onde os braço não poderiam lhe alcançar. Sentiu que pisava novamente em alguns tipos de caroços, e percebeu que aquele único rosto, agora havia se multiplicado em centenas. Centenas de rostos de crianças, adultos, homens, mulheres, velhos... Os gemidos cada vez aumentavam mais. Paulo não conseguia mais suportar o barulho e acabou caindo atordoado no chão, tentando tapar os ouvidos. Percebeu que a menina se sentou desengonçadamente e Parecia que ela recolocava os membros no lugar. Era como se fossem mãos invisíveis que a montavam. O rapaz tremia. Sentia que o pingo de sanidade, o qual tentava a todo custo se agarrar, escapava lentamente por entre seus braços. Sentia a textura da razão, gelada como argila, vazar por entre seus dedos, conforme apertava, tentando mantê-la ali, no seu devido lugar. A menina engatinhou até ele. Seus olhos estavam estalados e ela não parecia olhar para ele. Olhava em sua direção, mas, não pareciam olhar para ele. Ela girava a cabeça levemente para a esquerda, e depois levemente para a direita. Então, seus olhos adquiriram uma serenidade perturbadora, e os lábios uma inocência encantadora e o sorriso que se projetava por eles não exibiam emoção nenhuma. Paulo se encolhia em posição fetal. Os olhos da menina começaram a ser consumidos por chamas negras. Seu sorriso se tornou em uma risada, que se transformou em gargalhada. Paulo sentia um cheiro de enxofre saindo da boca da garota. O cheiro tornava a respiração praticamente impossível.
O rapaz gemia. Desespero, agonia, pavor... Loucura. Paulo não sabia o que estava na sua frente. Paulo não sabia mais quem era Paulo. Paulo não sabia mais se hoje era quarta-feira ou se era domingo. Paulo não era mais nada e nada mais era Paulo. Paulo gritava. Paulo tentava agarrar o que quer que fosse, o que quer que estivesse a sua frente, ao seu alcance, para tentar sair dali, mas não conseguia. Sentia alguém pisando em seu rosto. Via alguém tentando acudir uma jovem menina caída macabramente no meio de um corredor com paredes verde musgo e tapete vermelho, todo mofado e esburacado.

Palavras não se formavam mais no que sobrara de sua consciência, apenas gritava, chorava, gemia, puro desespero, agonia e loucura

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