O andar
estalava os galhos a seus pés, enquanto a lua banhava o que restava dos seus
cabelos. O peso da mochila forçava suas costas para o chão. Toda sua bagagem...
João Vítor estava exausto e isso era bom. Era a primeira vez nesses últimos
meses em que se sentia vivo. Até então, apenas respirava, comia, cagava,
entrava nas filas de bancos e pagava contas de água e luz. Parou para tentar se
localizar. Olhou para o céu e enxergou mais estrelas do que estava acostumado.
Olhou ao redor e via apenas árvores de pouco mais de quatro metros dançando ao
sopro dos ventos de novembro. Não fazia ideia de onde estava. Finalmente a
satisfação. Sabia que estava em algum tipo de montanha, pois estava em aclive.
Talvez na serra. Não lembrava como tinha conseguido sair das planícies e
chegado tão longe - e isso não importava para si.
Jogara o
jogo da vida e perdera feio. "Derrotado" era o que pululava em sua
mente. Na verdade, não apenas em sua mente, mas nas caras de todos a quem um
dia conhecera. Percebeu que seu ritmo de caminhar diminuía com esses
pensamentos e tratou logo de jogá-los barranco a baixo. O chacoalhar metálico
produzido pela barraca que carregava na mochila fazia-o lembrar de que poderia
ter montado acampamento a mais de - olhou para o céu para conseguir chutar o
horário - três horas - não fazia ideia - atrás, não se importava. Em todas as
noites anteriores tinha planejado tudo: onde instalar a barraca, o saco de
dormir, a fogueira... Tudo para passar em claro ouvindo o estalar da lenha e
sentir o calor se esvaindo quando cansava de alimentar a chama. Preferia dormir
essa noite ao relento e virar janta de mosquitos - com sorte, de algum animal
maior também - do que dar o azar de parar para pensar e reviver o passado que o
atormentava.
A última
coisa que lembra daquela noite foi de ter escutado um uivo. Não sabia se aquilo
tinha sido ação do vento ou de algum tipo de lobo ou cão selvagem. Todos os
seus conhecimentos sobre a Terra Média, Westeros, Nárnia e Hogwartz não surtiam
efeito no mundo real. Lembrou-se da dor de ter se desfeito de todas as suas
miniaturas. Ateara fogo em seus livros e abandonara os seus videogames no meio
da calçada. Vendera em um brik todos os seus móveis. Tudo. Cama, mesa,
cadeiras... Suas roupas agora estavam em algum brechó, ou já vestindo algum poser que nem sabia a diferença entre um
mangá shonen e shoujo. João Vítor voltou a si com o sol da manhã acertando-lhe o
rosto em cheio. Tateou o corpo lembrando da possibilidade de ter sido atacado
por um predador enquanto dormia... Tudo intacto. As pernas doíam, todavia.
Abriu os olhos rapidamente e não viu ferimento nenhum. Era a exaustão. Boca
seca. Não bebia nada há horas. Deu-se por conta de que existiam outros dois
sentidos. Ouvia o mar. Não compreendera. Como era possível ouvir o mar se
estava no meio das montanhas? Sentou-se e forçou a memória. Alguns flashes lhe
invadiam a cabeça lembrando-lhe de algumas passagens de sua caminhada por entre
propriedades rurais. O sotaque das pessoas que ouvia conversar quando passava
por alguns bares, ou mercearias próximas as estradas - que tentava evitar ao
máximo, para excluir a possibilidade de encontrar quem quer que fosse - era
bastante diferente do que estava acostumado. Entretanto, o cheiro fraco, porém,
existente, dava-lhe alguma certeza do que sentia. Por outro lado, poderia estar
alucinando, o que seria perfeito. Pensou na probabilidade de estar
enlouquecendo, então, sorriu. A visão se acostumara com a claridade e pôde enxergar
que o seu entorno não mudara muito. As mesmas árvores e uma inclinação de mais
algumas dezenas de metros.
Os sapatos,
a bermuda e a camiseta que lhe restara já estavam puídas e imundas. Era o
segundo dia de subida. A barriga roncou e a boca continuava seca. Retirou do
bolso um livrinho pequenino. Era um manual em quadrinhos de escoteiros. Os
protagonistas eram Huguinho, Zézinho e Luizinho - sim, os sobrinhos do Tio
Patinhas. Buscou ali alguma coisa sobre armadilhas para animais pequenos, como
coelhos. Encontrou. Apenas não fazia ideia se, naquela montanha, havia coelhos.
Deu de ombros e vasculhou sua mochila. Ainda tinha meio cantil d'água. Bebeu o
menos possível para conseguir saciar uma fração da sua sede. O ruído do mar se
confundia um pouco com o som do vento. Contudo, tinha certeza de que sentia o
cheiro, trazendo, novamente, a certeza de que enlouquecia. Olhou para cima e
procurou o sol. Ainda não estava a pino. Deveria ser nove horas. Buscou no
manual algo sobre horário solar. Novamente encontrou alguma informação e julgou
correta sua suposição. Notara que a subida estava mais íngreme naqueles metros
finais. Calculou que levaria cerca de uma hora para vencer aquele último
pedaço. Levou em consideração seu cansaço, angulação, desidratação, pressão
atmosférica... Não... Respirou fundo. O grande problema até aqui fora
exatamente isso: seus planos. Seus cálculos e planejamentos. Quando seu lado
obsessivo entrava em ação, João Vítor entrava era pelo cano. Esboçara
estratégias para fazer algo extraordinário por toda a sua vida - ou melhor, a
partir do momento em que adquirira consciência dos impactos de suas ações sobre
o caos da existência. Quando planejou vivenciar as amizades de forma mais
intensa, tornara-se um inconveniente - era o que diziam, dessa forma ou com
algum sinônimo. Algo parecido aconteceu em sua vida amorosa, e acabou virando
um submisso. Recebera o fora, pelo que ela dissera ser "excesso de
romantismo".
Tantos
cálculos, tantos planos... Descartes era um filho da puta com seus pontos eixos
e retas.
A
vegetação, então, se alterou. As árvores deram lugar a capins e arbustos. O
andar tornou-se menos laborioso, porque a inclinação também diminuíra. O solo
era menos arenoso e mais rochoso e firme. Ouvia o gorjear de pássaros e o aroma
da grama umidificada pelo vapor d'água que condensara das nuvens. Quanto a elas,
era possível avistar várias tomando os cumes de inúmeras outras montanhas e
regiões do vale que via à sua frente. Sentia-se no topo do mundo com aquela
visão. Constatava o nada que era através daquela visão. As montanhas desenhavam
ondulações na paisagem - algumas suaves, outras bruscas. As cores, os tons, as
sombras... Era como se João Vítor observasse uma tela. A visão que só conhecia
no imaginário ou na criação de pinturas de paisagens - digitais ou não -, que nunca
lhe fizeram sentido, estava bem ali.
Uma estrada
contornava a escarpa lobo abaixo e era possível ouvir os caminhões que
transportavam soja buzinando, freando e até mesmo pingando óleo. As folhas das
árvores farfalhavam com a brisa do oceano. Sim, o mar estava lá. Era possível
vê-lo a centenas de quilômetros diagonal a baixo no fim do vale. Por um momento
ficou triste, pois a verdade é que não havia enlouquecido. A linha do horizonte
existia apenas ali, naquele fragmento de cenário, o qual, João Vítor podia
agarrar com o cerrar de uma das mãos, separando aquela pequena fração de todo o
grandioso e infinito resto. Assim, o rapaz finalmente entendeu que a vida é
implacavelmente rugosa.