segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Rugosidade

            O andar estalava os galhos a seus pés, enquanto a lua banhava o que restava dos seus cabelos. O peso da mochila forçava suas costas para o chão. Toda sua bagagem... João Vítor estava exausto e isso era bom. Era a primeira vez nesses últimos meses em que se sentia vivo. Até então, apenas respirava, comia, cagava, entrava nas filas de bancos e pagava contas de água e luz. Parou para tentar se localizar. Olhou para o céu e enxergou mais estrelas do que estava acostumado. Olhou ao redor e via apenas árvores de pouco mais de quatro metros dançando ao sopro dos ventos de novembro. Não fazia ideia de onde estava. Finalmente a satisfação. Sabia que estava em algum tipo de montanha, pois estava em aclive. Talvez na serra. Não lembrava como tinha conseguido sair das planícies e chegado tão longe - e isso não importava para si.
            Jogara o jogo da vida e perdera feio. "Derrotado" era o que pululava em sua mente. Na verdade, não apenas em sua mente, mas nas caras de todos a quem um dia conhecera. Percebeu que seu ritmo de caminhar diminuía com esses pensamentos e tratou logo de jogá-los barranco a baixo. O chacoalhar metálico produzido pela barraca que carregava na mochila fazia-o lembrar de que poderia ter montado acampamento a mais de - olhou para o céu para conseguir chutar o horário - três horas - não fazia ideia - atrás, não se importava. Em todas as noites anteriores tinha planejado tudo: onde instalar a barraca, o saco de dormir, a fogueira... Tudo para passar em claro ouvindo o estalar da lenha e sentir o calor se esvaindo quando cansava de alimentar a chama. Preferia dormir essa noite ao relento e virar janta de mosquitos - com sorte, de algum animal maior também - do que dar o azar de parar para pensar e reviver o passado que o atormentava.
            A última coisa que lembra daquela noite foi de ter escutado um uivo. Não sabia se aquilo tinha sido ação do vento ou de algum tipo de lobo ou cão selvagem. Todos os seus conhecimentos sobre a Terra Média, Westeros, Nárnia e Hogwartz não surtiam efeito no mundo real. Lembrou-se da dor de ter se desfeito de todas as suas miniaturas. Ateara fogo em seus livros e abandonara os seus videogames no meio da calçada. Vendera em um brik todos os seus móveis. Tudo. Cama, mesa, cadeiras... Suas roupas agora estavam em algum brechó, ou já vestindo algum poser que nem sabia a diferença entre um mangá shonen e shoujo. João Vítor voltou a si com o sol da manhã acertando-lhe o rosto em cheio. Tateou o corpo lembrando da possibilidade de ter sido atacado por um predador enquanto dormia... Tudo intacto. As pernas doíam, todavia. Abriu os olhos rapidamente e não viu ferimento nenhum. Era a exaustão. Boca seca. Não bebia nada há horas. Deu-se por conta de que existiam outros dois sentidos. Ouvia o mar. Não compreendera. Como era possível ouvir o mar se estava no meio das montanhas? Sentou-se e forçou a memória. Alguns flashes lhe invadiam a cabeça lembrando-lhe de algumas passagens de sua caminhada por entre propriedades rurais. O sotaque das pessoas que ouvia conversar quando passava por alguns bares, ou mercearias próximas as estradas - que tentava evitar ao máximo, para excluir a possibilidade de encontrar quem quer que fosse - era bastante diferente do que estava acostumado. Entretanto, o cheiro fraco, porém, existente, dava-lhe alguma certeza do que sentia. Por outro lado, poderia estar alucinando, o que seria perfeito. Pensou na probabilidade de estar enlouquecendo, então, sorriu. A visão se acostumara com a claridade e pôde enxergar que o seu entorno não mudara muito. As mesmas árvores e uma inclinação de mais algumas dezenas de metros.
            Os sapatos, a bermuda e a camiseta que lhe restara já estavam puídas e imundas. Era o segundo dia de subida. A barriga roncou e a boca continuava seca. Retirou do bolso um livrinho pequenino. Era um manual em quadrinhos de escoteiros. Os protagonistas eram Huguinho, Zézinho e Luizinho - sim, os sobrinhos do Tio Patinhas. Buscou ali alguma coisa sobre armadilhas para animais pequenos, como coelhos. Encontrou. Apenas não fazia ideia se, naquela montanha, havia coelhos. Deu de ombros e vasculhou sua mochila. Ainda tinha meio cantil d'água. Bebeu o menos possível para conseguir saciar uma fração da sua sede. O ruído do mar se confundia um pouco com o som do vento. Contudo, tinha certeza de que sentia o cheiro, trazendo, novamente, a certeza de que enlouquecia. Olhou para cima e procurou o sol. Ainda não estava a pino. Deveria ser nove horas. Buscou no manual algo sobre horário solar. Novamente encontrou alguma informação e julgou correta sua suposição. Notara que a subida estava mais íngreme naqueles metros finais. Calculou que levaria cerca de uma hora para vencer aquele último pedaço. Levou em consideração seu cansaço, angulação, desidratação, pressão atmosférica... Não... Respirou fundo. O grande problema até aqui fora exatamente isso: seus planos. Seus cálculos e planejamentos. Quando seu lado obsessivo entrava em ação, João Vítor entrava era pelo cano. Esboçara estratégias para fazer algo extraordinário por toda a sua vida - ou melhor, a partir do momento em que adquirira consciência dos impactos de suas ações sobre o caos da existência. Quando planejou vivenciar as amizades de forma mais intensa, tornara-se um inconveniente - era o que diziam, dessa forma ou com algum sinônimo. Algo parecido aconteceu em sua vida amorosa, e acabou virando um submisso. Recebera o fora, pelo que ela dissera ser "excesso de romantismo".
            Tantos cálculos, tantos planos... Descartes era um filho da puta com seus pontos eixos e retas.
            A vegetação, então, se alterou. As árvores deram lugar a capins e arbustos. O andar tornou-se menos laborioso, porque a inclinação também diminuíra. O solo era menos arenoso e mais rochoso e firme. Ouvia o gorjear de pássaros e o aroma da grama umidificada pelo vapor d'água que condensara das nuvens. Quanto a elas, era possível avistar várias tomando os cumes de inúmeras outras montanhas e regiões do vale que via à sua frente. Sentia-se no topo do mundo com aquela visão. Constatava o nada que era através daquela visão. As montanhas desenhavam ondulações na paisagem - algumas suaves, outras bruscas. As cores, os tons, as sombras... Era como se João Vítor observasse uma tela. A visão que só conhecia no imaginário ou na criação de pinturas de paisagens - digitais ou não -, que nunca lhe fizeram sentido, estava bem ali.

            Uma estrada contornava a escarpa lobo abaixo e era possível ouvir os caminhões que transportavam soja buzinando, freando e até mesmo pingando óleo. As folhas das árvores farfalhavam com a brisa do oceano. Sim, o mar estava lá. Era possível vê-lo a centenas de quilômetros diagonal a baixo no fim do vale. Por um momento ficou triste, pois a verdade é que não havia enlouquecido. A linha do horizonte existia apenas ali, naquele fragmento de cenário, o qual, João Vítor podia agarrar com o cerrar de uma das mãos, separando aquela pequena fração de todo o grandioso e infinito resto. Assim, o rapaz finalmente entendeu que a vida é implacavelmente rugosa.

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