Era um quarto
minúsculo. As paredes descascavam e a tinta branca dava lugar a um mofo verde
com algumas tonalidades amarelas. Francisco estava ali dentro. Sentia-se
atraído por aquele lugar. Algo o arrastava até ali. Como havia chegado lá? Não
sabia... Sabia apenas que lá estava. Uma força gravitacional obscura como o espaço
sideral o sugava naquela direção igual a um buraco negro. Buscou uma janela
para saber onde estava, mas não havia nenhuma. Uma luz iluminava o quartinho,
mas não conseguiu ver a fonte. Era como se fosse de uma lâmpada incandescente
de 40 watts, porém, como dito, não tinha nada. A luz simplesmente vertia do
cômodo.
Percebeu que a
parede a sua frente do cubículo, na verdade eram as costas de um armário e
decidiu ir averiguar.
Nesse
instante, uma velha senhora adentra o quarto. Conhecia aquela pessoa e sabia
que era de longa data, porém, ao mesmo tempo, não fazia ideia de quem era. A
fisionomia era de sua avó, mas não era ela quem estava ai, diante de seus
olhos. Analisava aquela velha senhora usando calças pretas de lã, um casaco
branco e um xale vermelho sobre os ombros. Usava, também, um grande óculos de
armação dourada. Examinou a pessoa por um tempo brevemente eterno.
- Eu me sinto
muito atraído por esse lugar. O que é isso aqui? – perguntou, enfim.
- Esse lugar
possui uma carga muito forte mesmo... Mas, venha, deixa eu te mostrar. –
respondeu a velha senhora. Não questionou, pois sentia que a confiança emanava
dela. Foi quando se deu conta de que, o que menos fluía naquele lugar era o
agradável. Tudo bem que era um lugar pequeno, mas a clausura... Uma claustrofobia
começava a se manifestar. Sentia-se abafado, começava a respirar com
dificuldade. Mesmo com a porta (única saída e única entrada) logo a sua frente,
mesmo com um temor começando a tomar conta de seu estômago, juntando a um
sentimento de alerta, não sentia a menor vontade de sair daquele lugar. Queria,
mas não tinha vontade. Pensava, mas o corpo não obedecia, o que gerava mais
temor... Começou a estranhar quando sentia era vontade de estar ali. As paredes
pareciam fechar-se, o cheiro de mofo se alastrava, e a gravidade do buraco
negro aumentava.
A velha
caminhava em direção as costas daquele armário, quando notou que havia uma
passagem, suficiente para passar um adulto – apertadamente – por vez. Chegando
a passagem, reparou algo que parecia ser uma espécie de mini armário embutido
na parede à direita. Sentiu uma espécie de campo gravitacional emanando dali,
um campo como se fosse produzido pela eletricidade, como se houvesse ali, do
seu lado, uma corrente de alta tensão, um gerador, transformador, etc. Mas era
apenas uma porta dupla com pouco mais de um palmo de tamanho. A cor era prata,
mas carregava, assim como todo o resto do cubículo, as marcas do tempo. Manchas
negras e desgaste. Talvez não fosse de prata de verdade... Não sabia
reconhecer. O estranho eram os puxadores. Eram dois cotoquinhos de madeira em
exemplar estado de conservação. Totalmente lisos. Parece que havia sido lixado
recentemente.
- Isso é um
portal que leva as dimensões inferiores. Não deves mexer nisso agora. – disse a
velha com uma voz indiferente ao prever que o rapaz fosse mexer ali.
- Como é que
é?
A
senhora seguiu caminhando ignorando a pergunta de Francisco. Finalmente
contornaram o armário. Ele era todo de madeira e pintado de branco. Assim como
os puxadores do mini armário, estava em perfeito estado. Até um pouco antes da
metade da altura, ele era cheio de gavetas. Três linhas de quatro gavetas. A
outra metade eram portas duplas e iam até o teto.
-
Ah! – disse a velha senhora com prazer na voz – aqui está! – e olhou para o
jovem com uma expressão muito séria.
O
jovem sentia o quarto totalmente fechado ao seu redor. Tentava, mas não
conseguia comandar o seu corpo. Sentiu que o semblante da velha mudava e
adquiria um tom sombrio. Um tom malicioso, confirmado por um sorriso que se
formava gradualmente no canto da boca, conforme Francisco ia deduzindo o que
estava acontecendo. Algo estava muito errado ali. Via seu corpo mover-se
sozinho e sendo tomado por uma sensação de prazer. Nada haver com sexual ou
perversões. Era como se fosse a satisfação de dever cumprido, aliado a uma
descarga de adrenalina. Ele consegue mover a cabeça em direção a estreita
passagem, mas o corpo não acompanhou. Frustrado, perdeu as forçar e a cabeça
voltou para a posição anterior. Surpreendeu-se quando a velha não estava mais
lá. Sumira como fazia o velho sábio num antigo desenho animado. Entretanto, a
novidade era que uma gaveta estava aberta. Sentia um forte impulso. Queria
pegar os objetos. Era um livro e um cristal... Parecia vermelho sangue, mas
lembrava uma ametista. Uma urgência vindo de fora do lugar invadia seus
sentidos. Sentia que suava frio, mas não conseguia mover as mãos nem os olhos
para constatar. Percebeu que algo havia lhe prendido dentro de seu próprio
corpo. Sentia uma escuridão ao seu redor. Sua visão, agora em forma de túnel
focava apenas no livro e no cristal. Apanhou o livro. A capa era dura e de
couro negro. Percebeu um pentagrama e uma cabeça de cabra na capa, desenhados
com linhas douradas. Juntou toda a força que conseguiu e arremessou o livro,
que se desfez em centenas, milhares de folhas, que choviam infinitamente dentro
daquele lugar. Cansado pelo esforço, entregou-se e assistiu o sua mão apanhar o
cristal.
Uma
corrente de ventos negros emanavam de seu corpo, fazendo as folhas girarem
transformando-se em tornados de papel. Sentia as trevas rugindo em seu intimo e
vazando por sua boca através de um berro gutural e hediondo. O que sobrava de
sua consciência sabia que tinha caído em uma armadilha, que aquela não era sua
avó já sabia, mas não suspeitava que era o que era. Um chamariz, um falso (ou
verdadeiro) “mestre dos magos”. Sentia uma raiva como nunca havia sentido antes
em sua vida. Algo que fazia desentendimentos no trânsito, serem uma brincadeira
de roda; O ódio dos Skinheads pelos negros serem apenas uma paixonite
reprimida; Católicos e protestantes irmãos brigando pelo lugar da frente no
carro...
Queria
matar. Matar tudo e a todos. O simples pensamento da morte lhe enchia o corpo
de um prazer – esse sim, semelhante ao sexual – que o tirava mais ainda de
dentro do seu corpo. As luzes se apagaram... Não... Era uma nova sensação de
visão. Era uma luz negra que criava formas e dimensões na escuridão. Correu em
direção à porta e saiu do cubículo.
Via-se
em casa, agora. Nesse momento de sanidade, sua visão voltou ao normal. Olhou no
espelho do quarto dos pais. Seus olhos eram dominados por chamas negras e
fantasmagóricas. Labaredas que impediam de ver seus olhos, mas sabia que
estavam ali. Algumas veias saltadas em seu rosto, braços e mãos também eram
negras. Suas unhas deram lugar a garras pequenas, mas eram afiadas. Sabia que
eram, pois estavam empapadas de sangue. Sua irmã entrou no quarto e fez contato
visual com o que um dia fora ele. A luz do luar banhava o cenário de um
massacre. Corpos em cima da cama. O jovem, ao ver a irmã, conseguiu, num
esforço tremendo falar, entre dentes, um “corre!” rosnado.
A
menina loira correu. Dois segundos depois a nova visão macabra entrou em cena
fazendo-o perder o controle mais uma vez. Para seu desespero, ele sabia que
corria atrás da irmã. Desesperava-se porque começava a sentir a adrenalina, o
prazer, de fazer o que iria fazer. Agora fazia porque queria. Estava perdido.
As palavras fugiam de sua mente, deixando apenas sensações, instintos...
“Matar” era o que vinha.
Matar...
Matar...
Matar...
E
uma lua cheia vermelha tomava conta dos céus e parecia sangrar a cada nova
vítima.