sexta-feira, 26 de julho de 2013

Mephisto

Era um quarto minúsculo. As paredes descascavam e a tinta branca dava lugar a um mofo verde com algumas tonalidades amarelas. Francisco estava ali dentro. Sentia-se atraído por aquele lugar. Algo o arrastava até ali. Como havia chegado lá? Não sabia... Sabia apenas que lá estava. Uma força gravitacional obscura como o espaço sideral o sugava naquela direção igual a um buraco negro. Buscou uma janela para saber onde estava, mas não havia nenhuma. Uma luz iluminava o quartinho, mas não conseguiu ver a fonte. Era como se fosse de uma lâmpada incandescente de 40 watts, porém, como dito, não tinha nada. A luz simplesmente vertia do cômodo.
Percebeu que a parede a sua frente do cubículo, na verdade eram as costas de um armário e decidiu ir averiguar.
Nesse instante, uma velha senhora adentra o quarto. Conhecia aquela pessoa e sabia que era de longa data, porém, ao mesmo tempo, não fazia ideia de quem era. A fisionomia era de sua avó, mas não era ela quem estava ai, diante de seus olhos. Analisava aquela velha senhora usando calças pretas de lã, um casaco branco e um xale vermelho sobre os ombros. Usava, também, um grande óculos de armação dourada. Examinou a pessoa por um tempo brevemente eterno.
- Eu me sinto muito atraído por esse lugar. O que é isso aqui? – perguntou, enfim.
- Esse lugar possui uma carga muito forte mesmo... Mas, venha, deixa eu te mostrar. – respondeu a velha senhora. Não questionou, pois sentia que a confiança emanava dela. Foi quando se deu conta de que, o que menos fluía naquele lugar era o agradável. Tudo bem que era um lugar pequeno, mas a clausura... Uma claustrofobia começava a se manifestar. Sentia-se abafado, começava a respirar com dificuldade. Mesmo com a porta (única saída e única entrada) logo a sua frente, mesmo com um temor começando a tomar conta de seu estômago, juntando a um sentimento de alerta, não sentia a menor vontade de sair daquele lugar. Queria, mas não tinha vontade. Pensava, mas o corpo não obedecia, o que gerava mais temor... Começou a estranhar quando sentia era vontade de estar ali. As paredes pareciam fechar-se, o cheiro de mofo se alastrava, e a gravidade do buraco negro aumentava.
A velha caminhava em direção as costas daquele armário, quando notou que havia uma passagem, suficiente para passar um adulto – apertadamente – por vez. Chegando a passagem, reparou algo que parecia ser uma espécie de mini armário embutido na parede à direita. Sentiu uma espécie de campo gravitacional emanando dali, um campo como se fosse produzido pela eletricidade, como se houvesse ali, do seu lado, uma corrente de alta tensão, um gerador, transformador, etc. Mas era apenas uma porta dupla com pouco mais de um palmo de tamanho. A cor era prata, mas carregava, assim como todo o resto do cubículo, as marcas do tempo. Manchas negras e desgaste. Talvez não fosse de prata de verdade... Não sabia reconhecer. O estranho eram os puxadores. Eram dois cotoquinhos de madeira em exemplar estado de conservação. Totalmente lisos. Parece que havia sido lixado recentemente.
- Isso é um portal que leva as dimensões inferiores. Não deves mexer nisso agora. – disse a velha com uma voz indiferente ao prever que o rapaz fosse mexer ali.
- Como é que é?
                A senhora seguiu caminhando ignorando a pergunta de Francisco. Finalmente contornaram o armário. Ele era todo de madeira e pintado de branco. Assim como os puxadores do mini armário, estava em perfeito estado. Até um pouco antes da metade da altura, ele era cheio de gavetas. Três linhas de quatro gavetas. A outra metade eram portas duplas e iam até o teto.
                - Ah! – disse a velha senhora com prazer na voz – aqui está! – e olhou para o jovem com uma expressão muito séria.
                O jovem sentia o quarto totalmente fechado ao seu redor. Tentava, mas não conseguia comandar o seu corpo. Sentiu que o semblante da velha mudava e adquiria um tom sombrio. Um tom malicioso, confirmado por um sorriso que se formava gradualmente no canto da boca, conforme Francisco ia deduzindo o que estava acontecendo. Algo estava muito errado ali. Via seu corpo mover-se sozinho e sendo tomado por uma sensação de prazer. Nada haver com sexual ou perversões. Era como se fosse a satisfação de dever cumprido, aliado a uma descarga de adrenalina. Ele consegue mover a cabeça em direção a estreita passagem, mas o corpo não acompanhou. Frustrado, perdeu as forçar e a cabeça voltou para a posição anterior. Surpreendeu-se quando a velha não estava mais lá. Sumira como fazia o velho sábio num antigo desenho animado. Entretanto, a novidade era que uma gaveta estava aberta. Sentia um forte impulso. Queria pegar os objetos. Era um livro e um cristal... Parecia vermelho sangue, mas lembrava uma ametista. Uma urgência vindo de fora do lugar invadia seus sentidos. Sentia que suava frio, mas não conseguia mover as mãos nem os olhos para constatar. Percebeu que algo havia lhe prendido dentro de seu próprio corpo. Sentia uma escuridão ao seu redor. Sua visão, agora em forma de túnel focava apenas no livro e no cristal. Apanhou o livro. A capa era dura e de couro negro. Percebeu um pentagrama e uma cabeça de cabra na capa, desenhados com linhas douradas. Juntou toda a força que conseguiu e arremessou o livro, que se desfez em centenas, milhares de folhas, que choviam infinitamente dentro daquele lugar. Cansado pelo esforço, entregou-se e assistiu o sua mão apanhar o cristal.
                Uma corrente de ventos negros emanavam de seu corpo, fazendo as folhas girarem transformando-se em tornados de papel. Sentia as trevas rugindo em seu intimo e vazando por sua boca através de um berro gutural e hediondo. O que sobrava de sua consciência sabia que tinha caído em uma armadilha, que aquela não era sua avó já sabia, mas não suspeitava que era o que era. Um chamariz, um falso (ou verdadeiro) “mestre dos magos”. Sentia uma raiva como nunca havia sentido antes em sua vida. Algo que fazia desentendimentos no trânsito, serem uma brincadeira de roda; O ódio dos Skinheads pelos negros serem apenas uma paixonite reprimida; Católicos e protestantes irmãos brigando pelo lugar da frente no carro...
                Queria matar. Matar tudo e a todos. O simples pensamento da morte lhe enchia o corpo de um prazer – esse sim, semelhante ao sexual – que o tirava mais ainda de dentro do seu corpo. As luzes se apagaram... Não... Era uma nova sensação de visão. Era uma luz negra que criava formas e dimensões na escuridão. Correu em direção à porta e saiu do cubículo.
                Via-se em casa, agora. Nesse momento de sanidade, sua visão voltou ao normal. Olhou no espelho do quarto dos pais. Seus olhos eram dominados por chamas negras e fantasmagóricas. Labaredas que impediam de ver seus olhos, mas sabia que estavam ali. Algumas veias saltadas em seu rosto, braços e mãos também eram negras. Suas unhas deram lugar a garras pequenas, mas eram afiadas. Sabia que eram, pois estavam empapadas de sangue. Sua irmã entrou no quarto e fez contato visual com o que um dia fora ele. A luz do luar banhava o cenário de um massacre. Corpos em cima da cama. O jovem, ao ver a irmã, conseguiu, num esforço tremendo falar, entre dentes, um “corre!” rosnado.
                A menina loira correu. Dois segundos depois a nova visão macabra entrou em cena fazendo-o perder o controle mais uma vez. Para seu desespero, ele sabia que corria atrás da irmã. Desesperava-se porque começava a sentir a adrenalina, o prazer, de fazer o que iria fazer. Agora fazia porque queria. Estava perdido. As palavras fugiam de sua mente, deixando apenas sensações, instintos... “Matar” era o que vinha.
                Matar...
                Matar...
                Matar...

                E uma lua cheia vermelha tomava conta dos céus e parecia sangrar a cada nova vítima.

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